sábado, 8 de março de 2008

Zé ordinário e seu dia complicado

Zé ordinário era um cara como eu ou como você: tinha dias bons, dias ruins--os que mais marcavam sua memória, infelizmente--e tentava obter alguma fórmula mágica onde os dois se neutralizavam oferecendo gotas de felicidade. Sabia que a vida que tinha era muito boa comparada a de outros, mas nasceu com torcicolo de ambição: vivia olhando o que poderia realizar a mais, e não o contrário.


Todos os dias ( ou tardes) em que acordava após uma noite de sonhos sem culpa, Zé ordinário tentava catalogá-los como presságios de algo grandioso. Se o bom futuro ou uma simples boa fase existem, ele pretendia com todas as forças memorizar o cheiro de um dia de mudança--para melhor, é claro. Assim sendo, se focou na primeira golfada de ar por toda fase de marasmo que passava.


Um belo dia, Zé ordinário pensou em um animal de estimação. Talvez a solidão tivesse o egoísmo que mataria sua capacidade de relacionamento. Por medo ou por impensada precaução, decidiu adotar um animal, uma companhia para os dias sem sonhos, afinal, a golfada de ar era relevante apenas nos dias de possíveis presságios. Seu projeto era ambicioso, muito maior do que um emprego ou um carro esportivo, mas a descoberta do aroma e todos os indícios de uma boa fase, de uma virada de maré. Um animal o ajudaria a manter o foco quando necessário, já que o ajudaria a relaxar nos dias desprovidos de devaneios atômicos.

Assim sendo, Zé pensou em cães, gatos e pássaros como companhias irritantes. Não seria possível a ele uma criação com o amor e carinho que estes animais necessitavam. Até mesmo o gato. Gatos são raros de dar problema ou fazer barulho excessivo, mas é inegável a raridade divina do objetivo de Zé. Ele não conseguiria mais viver se, no dia de sua grande virada, seu nariz fosse inundado pelas fragrâncias revoltantes de vômito ou fezes felinas. Ele acabaria matando o pobre animal, e isso ainda amaldiçoaria sua próxima vida, tornando o projeto uma promessa adiada por calculados 167 anos. Não. Ele conseguiria o aroma do dia decisivo a qualquer preço. O animal era necessário para mantê-lo no curso.


Assim sendo, cogitou os peixes e animais "semi-bibelô". São fáceis de cuidar. Peixes, algas, anêmonas, cavalos (marinhos, por favor!)--tudo muito silencioso. Calmo. Inodoro. Admirou as qualidades até que seu cerne se dobrou em direção a uma resposta lógica: Mas que coisa mais chata. Ficar sozinho sem nada pra ver é solidão. Ficar sozinho com diversas vidas acontecendo é isolamento. Que se danem os peixes--pensou. Era final de tarde e foi cozinhar os parentes menos afortunados de seus últimos candidatos a pet.

Quebrando ovos para acompanhar os peixes cogitou em um galo. Galos o ajudariam a acordar, não dando margem à falhas como preguiças matinais ou ressacas elásticas, capazes de alcançar até as 16 horas. Um galo o ajudaria no dia. Sorriu e quase proferiu um "achei", mas imediatamente se viu obrigado a abortar. Seu porta-talheres era justamente a carcaça de um rádio-relógio infeliz, que tentou acordá-lo para uma entrevista de emprego às 5:45. Cinco e quarenta e cinco da manhã é crime--pensou--eu só agi em legítima defesa--retrucou, ali, sozinho com as duas pescadas e os ovos, cadáveres da busca de Zé ordinário por um companheiro para seu grandioso projeto.


Mastigou quase que meia vez e foi interrompido pelo som de sua inépcia na cozinha. Cascas de ovo na comida. Que porcaria. Quando os bons dias chegarem, com certeza irá pagar alguém para exclusivamente limpar as cascas de seus ovos mexidos. Não. Uma cozinheira estaria fora de cogitação. Ele sabe cozinhar seus ovos como ninguém, apenas deseja deportar as casquinhas de ovo para longe de seu prato. Engoliu e olhou para a janela. Mais uma noite descoberto. Sem ninguém para acompanhá-l0. O que seria dele se amanhã fosse o dia da mudança? Ele cheiraria a nova fase com ânimo e não teria mais do que um travesseiro ou seu cabideiro para abraçar.

Desanimado, se viu em fracasso legítimo e irretratável. O dia se foi e agora ele dorme só. O animal que precisa para acompanhá-lo por todo processo não existe.

E, se ele não existe--concluiu--Deus não deve ter criado essa história toda de "vento da mudança" ou "fase boa", caso contrário, um animal seria o mais indicado para isso, mesmo em um segundo momento, para alguém de tirocínio raro como o dele." Até porcos sabem fazer algo além de se cagarem e comer metade do que cagam. Alguns farejam trufas, aquelas coisas que todos sabem ser caras mas nem cogitam sobre o sabor. "

Foi seu último pensamento antes de retirar os chinelos- de- dedo e permitir às meias uma retratação com sua forma original. Deitado, suspirou, não pelos meses de desemprego ou pelo tédio, mas por ter sido derrotado em sua jornada por animais.

Eis que teve o reflexo de sua torcicolo física, prima distante de sua personalidade dominadora e temerária ao mundo que não queria saber de Zé Ordinário nem por currículo. Olhou para cima e finalmente recebeu o recado que o faria o homem mais sábio do mundo, capaz de encarar as coisas com profunda sabedoria. Seu animal finalmente fora escolhido.

Era perfeito. Ele estaria com ele em todos os momentos e em todos os lugares, desde que deixasse um espaço para ser carregado. Era companheiro mesmo, daquele tipo que lembra os animais que seguem carrinheiros e maloqueiros em geral, não se importando em qual fase seu dono se encontra.

O martelo final veio quando se lembrou de que só são curiosamente encontrados como fêmeas. Ótimo. Cães fêmeas são mais calmos. Eis o animal que Zé Ordinário escolheu para sentir o perfume de dias melhores:







Se chama "esperança".






E dormiu. Seu rumo era brilhante. Agora só faltava saber o que esse bicho come, se e como é vacinado e por quanto tempo viverá ao seu lado...

2 comentários:

Sun disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Sun disse...

sumido!