terça-feira, 2 de outubro de 2007

Guarda-chuva

Guarda-chuva( André Zilar)

Outro dia desses, nos meus momentos de introspecção, andando pela Paulista--como tenho feito nestes últimos meses, percebi que as pessoas esbarram demais. E estes sacolejões vão minando o pouco bom-humor que habita a alma de cada um que acorda entre as 6:00 e 7:00. Daí em diante virei um estudioso no assunto "sacolejões & esbarrões". Enfim, me auto-denominei esbarradologista.

Assim sendo, encontrei um sentido na frequência e intensidade da pressa das pessoas que encontra sua dose cinética nos incólumes passantes. Seu traje auxilia um pouco na diminuição dos trancos, barrancos e engravatados da paulistéia envaidecida. De calça jeans e camiseta você é relativamente importunado, mas não o suficiente para criar teorias tão profundas como a deste esbarradologista aqui.

De terno e gravata, qualquer um é invulnerável, pelo menos ao batalhão de trabalhadores irrefreáveis na sua trajetória com os ombros desocupados e pecadores daqueles que se dão ao luxo de meramente apreciar a basáltica arquitetura da avenida, que mais parece um rio de gente. Agora, se estiveres trajado como um assalariado mínimo, de bermudas, chinelos e camiseta, não importa quem você é--do Popó ao Papa, você será literalmente atropelado, afogado neste mar de gente agendada.O que aconteceu de curioso nesta equação, criação máxima da minha carreira de esbarradologista, é uma nova variável.É dela que quero falar. Anote o segredo e não conte a ninguém.
Estamos em março, mês esquisito em São Paulo, onde uma hora chove e na outra o sol vem rachando e clamando seu reinado no feudo de concreto. Assim sendo, não é possível saber que horas vai chover ou simplesmente parar. Me desculpem os bons paulistanos informados, que compram as oraculares previsões metereológicas. Se vocês crêem em ciência, eu creio em signos, saibam bem disso e fiquem nos seus cantos corporativos. "Cada um é cada um e deixe o cada um dos outros"-- é como Daniel, meu amigo de Santos diz.

No meio desta imprevisibilidade sem pé nem cabeça, decidi comprar um guarda-chuva. Não me dou com o antiquíssimo aparelho, há uma incompatibilidade de gênios entre ele, a geografia e minha memória, mas vá lá: " me dê um, vai". Por dez reais. Dali em diante, meu caro leitor, a vida deste amassado, esbarrado e atropelado ser humano mudou na Avenida Paulista.
Percebi que eu não tinha um mero guarda-chuva. Como não chovia, só cabia a mim carregá-lo, até que Deus, nos trâmites da naturalidade me pôs a andar e carregar o equipamento como se fosse uma bengala não utilizada. Melhor: um cajado. Então se imagine como Moisés, na eclesiástica obra. Eu abria um mar, muito mais revolto e rico do que o de água e sal: erao mar de gente da Paulista.Andando vitorioso, acreditei que tinha achado minha arma, meu nobre artefato em nome da minha existência espacial no trânsito não multado dos pedestres paulistanos. Vi que meu equipamento não era algo raro de se encontrar. Como disse, era época de roda da fortuna com as condições climáticas, e nada melhor do que o incerto para que os que são menos assalariados mínimos ( como fui concebido pela aparência). Todo ambulante ou imóvel passou a vender guarda-chuvas a tudo e todos que tivesse uma cabeça para molhar.Bem, e o que há de mais curioso neste fato? Ah, obviamente você deve se perguntar. A resposta você conhece, e se fores paulistano mais do que tudo:chuva.Com a chuva, só posso lamentar o fim de minha breve nobreza como passante. Todos passaram a abrir seus guarda-chuvas, outros a comprar e então me deparei com o segundo momento mais frustrante da minha carreira como esbarradologista. Agora guarda-chuvas se esbarravam, e entendi que na chuva tudo em São Paulo piora--até o trânsito de...guarda-chuvas!
Amigo, a Paulista parecia o campo de batalha de uma cruzada medieval, provavelmente elencando os sangrentos Templários, pois cada um se defendia como podia. A proteção contra o líquido da vida se tornou uma arma branca. E assim andar passou a ser uma atividade correlata à esgrima. Que tristeza, logo eu que nem pratico o esporte mais básico que é correr, me vejo no meio do campeonato não-declarado de esgrima com guarda-chuvas.Percebi que nesta analogia cada um se defendia com o que tinha. Mulheres mais delicadas com suas armas curtas, pequenas mas de espigões afiados, enquanto engravatados ( os pretores da era guarda-chuviana) abatiam os incaltos com seus poderosos guarda-chuvas negros, amplos e rombudos, tudo do alto da sua impermeável supremacia. O que fiz é meio óbvio, tentei repousar meus olhos na lei, mas ali percebi que estes são seres inexistentes no mundo dos cabos em jota. Eles apenas tomam o lugar de platéia, uma vez que não utilizam o aparato. As crianças, como em qualquer guerra, se agarravam às saias de suas nobres e precisas ( com as pontas dos guarda-chuvas) mães. Animais nos olhavam com terror. Somos estranhos mesmo, não?

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